O negócio milionário dos catálogos musicais
Do site da UBC
Entre os muitos processos acelerados pela pandemia de Covid-19, está uma grande reorganização em curso no mercado musical. É a compra de catálogos inteiros de artistas famosos, algo que já vinha ocorrendo pontualmente há décadas, mas que agora vive ares de uma guerra que opõe, de um lado, fundos de investimento multimilionários e, de outro, editoras desejosas de conservar seus talentos e manter seu negócio de pé.
A União Brasileira de Compositores (UBC) ouviu artistas, editores e fundos de investimento envolvidos na compra de catálogos para revelar o que há por trás desta disputa que pode ditar o futuro da indústria da música.
Por trás dessas megatransações, como a midiática aquisição de todo o cancioneiro de Bob Dylan por mais de US﹩ 300 milhões anunciada em dezembro, estariam principalmente dois fatores: os crescentes sinais de que Estados Unidos e União Europeia imporão maiores taxações ao capital financeiro, o que levaria investidores a buscarem outros portos “seguros” para seu dinheiro; e a prevista explosão do streaming, que liderará a expansão do mercado para coisa de US$ 131 bilhões em 2030, quase o dobro dos US﹩ 62 bilhões gerados em 2017, segundo um estudo recente do Goldman Sachs.
Mas, para além da miragem dos números chamativos envolvidos nessas aquisições, estão os autores. Ao vender seus catálogos, renunciando aos ganhos futuros com sua própria criação, muitos deles parecem movidos pela necessidade de dinheiro rápido – o que, a experiência ensina, quase nunca é a melhor maneira de fechar um negócio.
“Não há um problema em si numa transação de compra e venda. O problema começa quando você se aproveita de um cenário em que a renda com os shows desapareceu e houve uma acentuada redução nas receitas com direitos autorais. Tem artista literalmente passando fome e que, claro, topa qualquer coisa para ter liquidez. Não compactuo com uma visão de mercado predatória, em que se oferecem valores sabidamente baixos para comprar o patrimônio de pessoas que precisam pagar as contas”, analisa Igor Bonatto, fundador e diretor-executivo do banco Noodle, voltado especificamente para o mercado musical.
Embora o Brasil ainda esteja engatinhando nesse tipo de transação, já há movimentações crescentes no país, como as parcerias recentes fechadas pelo fundo de investimentos Hurst Capital.
Nos últimos meses, eles compraram participações de até 30% dos catálogos de artistas como Toquinho, Paulo Ricardo, Luiz Avellar e Felipe Goffi. Além disso, em alguns casos, ofereceram adiantamentos a artistas buscando liquidez e, em troca, ficarão integralmente com seus valores de direitos autorais por prazos que variam de 4 a 6 anos.
“A obra é do artista, é uma criação do espírito dele, não tem que ficar sem ela. Queremos ser o sócio financeiro minoritário”, define Arthur Farache, diretor-executivo da Hurst. “Eu já tinha experiência prévia bem curta e não profunda em direitos autoral. Em dezembro de 2019, começamos a estudar a possibilidade de investir em propriedade intelectual como um todo. A conclusão foi que a música era a área mais pronta para isso.”
O modelo de negócio da Hurst é manter a administração nas mãos do artista ou da sua respectiva editora e receber unicamente a sua parte como sócia minoritária: “Para a gente, a vantagem é ter uma relação de longo prazo com o artista, tornando-nos parceiros dele para seus projetos futuros.”
Os métodos usados pelos fundos para estimar o valor a ser oferecido aos artistas nem sempre é de todo claro. “Fazemos uma estimativa do múltiplo de faturamento/ano daquele catálogo e calculamos o valor”, resume Arthur Farache.
Uma fonte com ampla experiência no mercado brasileiro disse à União Brasileira de Compositores que alguns dos fundos têm utilizado táticas agressivas, no limite da ética. “Eles procuram sociedades de gestão coletiva para saber quem fatura mais em direitos autorais por ano, por exemplo, um dado cujo compartilhamento é ilegal por se tratar de informação fiscal de uma pessoa”, afirmou, citando a Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018), que prevê penas de multas altas para quem difundir dados sem autorização. “Com essa informação privilegiada em mãos, vão atrás do artista para oferecer um valor, quase sempre abaixo do que vale. A ideia é tentar seduzir pela cifra em si.”
Um modus operandi que analistas do mercado dizem não diferir muito daquele usado por fundos como o Hipgnosis Songs Fund, do Reino Unido. A diferença é que a empresa criada Merck Mercuriadis, empresário de 57 anos nascido no Canadá e ex-agente de Beyoncé, Elton John e Iron Maiden, faz a compra total, seja de hits específicos, seja de catálogos fechados.
Com cerca de US﹩ 1,7 bilhão já investidos na aquisição de mais de 57 mil canções, de Mariah Carey a George Benson, de 50 Cent a Starrah (a jovem compositora por trás de sucessos de Rihanna, Drake e Maroon 5), o Hipgnosis aposta no retorno através do recebimento de 100% dos direitos fonomecânicos do streaming e da execução pública em rádio, TV e shows, por exemplo, além da administração direta do catálogo. Para isso, montou equipes inteiras dedicadas a buscar oportunidades de sincronização do catálogo em filmes, séries de TV e publicidade.
“O modelo tradicional de edição musical é algo que eu quero destruir completamente. O editor musical, hoje em dia, é um eufemismo para alguém que recebe seu dinheiro mas que realmente não faz muito para agregar valor à sua canção”, Mercuriadis disse, em dezembro, em entrevista ao diário americano “The New York Times”.
Uma ideia que Aloysio Reis, diretor-geral da Sony/ATV no Brasil, não poderia refutar mais fortemente: “É uma tolice oportunista de quem utiliza uma pretensa modernidade como isca para atrair incautos. Não há fórmula mágica para realizar a gestão de obras musicais.”
Seja como for, o movimento que Mercuriadis iniciou provocou a resposta, na mesma moeda, de editoras como a BMG e a Universal, cuja megacompra do catálogo de Dylan foi uma clara declaração de intenções: os players tradicionais também estão no jogo.
“A indústria musical deve muito a Merck, já que foi ele quem abriu a porta e persuadiu o mundo financeiro a descobrir o enorme valor que há nos direitos autorais, Mas é a BMG quem está mais preparada para o mercado”, disse Hartwig Masuch, diretor-executivo da megaeditora, em entrevista ao jornal inglês “The Sunday Telegraph”, na qual garantiu: a BMG vai continuar a investir na aquisição de catálogos.
A Warner Chappell também se diz abertamente em busca de oportunidades de fechar acordos do gênero. Mas seu diretor-executivo global, Guy Moot, ressalva: “há uma grande diferença entre alguém com um talão de cheques e um editor musical.”
Para ele, os fundos de investimento não têm a expertise e o domínio do mercado como uma grande editora: “Antes eu costumava dizer ao meus compositores ‘não venda a sua casa’. Mas, quando oferecem a eles 19, 20, 21 vezes o valor, não posso olhar nos olhos deles e continuar a dizer o mesmo.”
No Brasil, ainda não há, nem de longe, movimento similar. “Mas não descarto que grandes editoras comecem a investir na compra de empresas daqui, com seus respectivos catálogos”, afirma Cris Falcão, diretora administrativa da Ingrooves Music Groove Brasil, subsidiária da Universal Music, citando a recente aquisição da Som Livre pela Sony Music como um sinal de interesse estrangeiro no mercado local.
“Me preocupa um pouco a falta de conhecimento de alguns fundos sobre o mercado musical. Música não é commodity, é criação artística. Tem que ser trabalhada. Comprar parte de um catálogo para sentar em cima dele esperando o streaming pagar melhor, sem buscar oportunidades para explorá-lo, não acho um bom modelo”, pondera Falcão.
Para Bonatto, a própria lógica que move o capital – ou seja, a busca do risco zero – tende a gerar ainda mais concentração no mercado, caso a onda de aquisições persista: “A música já está nas mãos de três ou quatro empresas. Os investidores vão querer ir aonde creem que seu dinheiro estará mais seguro. Ninguém investirá nos pequenos. Com isso, cresce a lógica que já impera: uns poucos com muito, e a maioria brigando por migalhas.”
Análise semelhante faz Paulo Sérgio Valle, compositor e presidente da UBC, para quem a melhor solução passa sempre pela possibilidade de o autor manter o controle sobre seu trabalho e ser capaz de explorá-lo economicamente sem renunciar aos seus direitos: “Minha opinião é simples. Quando um autor vende sua obra, vende parte da sua alma.”
David Bowie protagonizou, já em 1997, um dos casos mais emblemáticos na relação entre artistas e o mercado. Ele fechou um acordo com a Prudential Insurance of America e capitalizou parte das suas criações futuras, transformadas em bonds que renderam US﹩ 55 milhões.
No Brasil, em 2013, o grupo Opportunity também fez um polêmico negócio com João Gilberto, na época em sérias dificuldades financeiras, pagando R$ 10 milhões para tornar-se “sócio” do gênio da bossa nova e receber os direitos autorais por alguns de seus discos mais emblemáticos.
Sem envolvimento de um grande banco ou fundo, Michael Jackson fez história bem antes disso, ao comprar o catálogo dos Beatles por US﹩ 47,5 milhões em 1985.
A compra das mais de 600 canções de Dylan pela Universal, em dezembro, causou alvoroço entre os fãs. Mas, no mercado, zero surpresa. Era só a mais estelar de uma série de negociações. Três estrelas da banda Fleetwood Mac, Lindsey Buckingham (em acordo com o Hipgnosis Songs Fund), Mick Fleetwood (com a megaeditora BMG) e Stevie Nicks (com a editora Primary Wave) embolsaram, somados, mais de US﹩ 200 milhões.
Shakira também vendeu, por valor não divulgado, suas 145 canções à Hipgnosis em janeiro, assim como Neil Young, que passou à Hipgnosis os direitos sobre suas 1.200 músicas por US$ 50 milhões. Em 4 de maio, a mais recente transação: o Red Hot Chili Peppers foi outro a vender, por US﹩ 140 milhões ao mesmo fundo Hipgnosis.
Na segunda quinzena de abril, pesos-pesados da música britânica, como Paul McCartney, Kate Bush, Sting, Annie Lennox e Jimmy Page, mandaram uma carta aberta ao primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, pedindo maior envolvimento do governo na pressão às plataformas de streaming por melhores remunerações, além de outro sistema de arrecadação e distribuição de royalties.
Para Cris Falcão, eles não estão sozinhos no lobby. “Certamente, grandes fundos também têm trabalhado com essa expectativa. Não faria sentido jogar tanto dinheiro na compra dos catálogos e esperar de braços cruzados. Eles querem aumentar a fatia autoral para se beneficiar.”
Outro lobby que poderia estar em curso é para aumentar o tempo de exploração da música, na maior parte do mundo estabelecido em 70 anos após a morte do último dos parceiros na composição. “De qualquer maneira, 70 anos são tempo mais do que suficiente para esses fundos terem o retorno que esperam, caso saibam trabalhar bem o repertório”, conclui Falcão.